terça-feira, 3 de maio de 2016

(EN)CANTAR (miniconto)



(EN)CANTAR



Tentando controlar a respiração descompassada, ela segue, da coxia para o palco. Sente na boca um estranho sabor agridoce decorrente da mistura do suspense com a adrenalina.

Os holofotes acendem. Sente-se frágil. Iluminada. Sozinha. No centro de tudo, enfrentando a plateia. Cada mínimo gesto, sob a mira de centenas de olhares a desnudá-la o corpo, a alma e o coração. Exposta sob todos os ângulos e sentidos. Seu corpo inteiro pulsa.

Iniciam os primeiros acordes e ela desperta do torpor inicial. Dá um passo à frente, controla o diafragma, segura o microfone. Inspira profundamente.

A música, invadindo seus ouvidos, lhe traz o bálsamo da leveza... Eis que chega a hora de suplantar a insegurança e encantar. Fecha os olhos. Entra no seu universo interior. Ali está segura. Não precisa mais pensar, tornou-se um instrumento de sopro. Abre a boca e solta o som vibrante que lhe vem ecoando por todo o corpo. Estremece. Todos os seus pelos eriçam. Lá dos recônditos da alma, acende a luz que lhe traduz a certeza de que nasceu para cantar.

Ali, sozinha e hermética, ela enxerga o tom de cada nota que lhe escapa. Vai colorindo os sons, acendendo palavras, traduzindo ritmos e libertando-se em gestos. 

Então, já pode abrir os olhos sem receio. Agora brilha mais que os holofotes. 


Andra Valladares
06/03/2015