terça-feira, 5 de agosto de 2014

A MÚSICA POÉTICA E A POESIA MUSICAL




O repertório musical brasileiro possui incontáveis letras de músicas que podem ser qualificadas como verdadeiras poesias. Mas toda letra de música pode ser considerada uma poesia? O que difere a poesia da letra de música? Qualquer poema pode ser transformado em letra de música?


Existem várias possibilidades nesse sentido. Entendo que essas possibilidades surgem a partir da intenção. Pode-se compor um poema para uma melodia pronta, musicar um poema escrito ou, ainda, compor letra e música simultaneamente, conferindo à letra um enfoque poético. Assim, são formadas músicas com letras poéticas, ou música poética. Como pode-se, também, compor música e letra visando apenas o lado comercial, intenção essa que acaba gerando os hits de momento que fatalmente são esquecidos com o passar dos anos.

As músicas poéticas geralmente se tornam clássicos populares, pois, devido à sua construção melódica e literária, perduram no tempo e passam a fazer parte do cancioneiro musical de um país. O Brasil possui vários autores que compuseram canções imortais dessa maneira. Como exemplo, podemos citar Noel Rosa, Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Cartola, Milton Nascimento, Dolores Duran, Chico Buarque. 

Quanto à musicalização de textos, é importante destacar que nem todo poema pode ser qualificado como poema musical. Não se pode musicar qualquer texto poético e obter resultados satisfatórios. Alguns fatores podem impossibilitar a composição de uma melodia para determinado poema. Entre esses fatores, podemos citar: a falta de musicalidade e/ou ritmo no texto; o tamanho do texto, pois os poemas muito extensos não são fáceis de musicar e os muito pequenos não possibilitam a construção de boas melodias; e o uso de linguagem muito rebuscada ou formal, pois o rebuscamento e a formalidade exagerados não combinam com a música popular e, mesmo quando esses poemas possuem ritmo e musicalidade, ao serem transformados em música, fica claro tratar-se de um “poema musicado”. 


Entendo que, em termos de estrutura, os sonetos são perfeitos para inspirar uma melodia. Por possuírem um tamanho adequado e serem metrificados, eles geralmente são dotados de uma musicalidade natural. Contudo, isso não quer dizer que todos os sonetos têm o condão de se transformarem em boas letras de música, ou que poemas isentos de métrica não possam ser musicados. 


Mesmo os poemas que não possuem métrica exata podem render ótimas letras. Isso pode ocorrer justamente porque a música é subjetiva e maleável, o que facilita trabalhar com ela. Para compor uma melodia, pode-se estender ou reduzir o tempo das notas, fazer pausas grandes ou pequenas, imprimir um andamento mais rápido ou vagaroso, ralentar o andamento, misturar ritmos... Existem muitas possibilidades e ferramentas para se criar uma boa melodia. Basta ter criatividade, conhecimento musical básico e senso estético. 


Um detalhe muito importante para quem deseja musicar um poema é que o compositor deve envolver-se pelo texto e se deixar levar pelo sentido e pela musicalidade natural dele, jamais devendo tentar “impor” a ele uma pré-determinada melodia e/ou ritmo. Isso geralmente não funciona. Talvez esse seja o maior desafio: não deixar transparecer que a música foi feita depois do poema. O ideal é que o resultado seja um “casamento perfeito” entre música e poesia, que dê a impressão de terem sido criadas simultaneamente, de maneira que, ao se escutar o trabalho, não seja possível identificá-lo como um “poema musicado”. O grande problema do poema musicado surge quando se torna possível perceber que a melodia e a letra não se encaixam perfeitamente, dando a impressão de estarem truncadas ou espremidas. 


Justamente por ser a música um elemento totalmente subjetivo e maleável, é muito mais fácil inserir a melodia em um poema do que escrever uma letra para uma melodia previamente composta, apesar de parecer o contrário. Para compor uma letra destinada a uma melodia pré-determinada, é necessário encontrar as palavras exatas, com mesma acentuação da frase melódica. Além disso, essas palavras devem formar frases com sentido literário. A letra deverá, também, captar o “sentido musical”. Se a melodia inspirar um sentido melancólico, o texto também deve seguir pelo mesmo caminho. Resumindo, não se trata de uma tarefa impossível, contudo, é bem mais trabalhosa que musicar um poema. 


Há muitos anos, tenho atuado na área literária e musical. Dessa forma, no tocante à musicalização de poemas, acredito que a experiência como poeta facilitou muito o meu trabalho, por me permitir reconhecer e captar rapidamente a musicalidade de um texto poético. Isso me levou a musicar poemas de diversos autores, como Florbela Espanca (“Maria das Quimeras” e “Amar!”), Mário Quintana (“Canção para Uma Valsa Lenta”), Castro Alves (“Canção do Violeiro” e um trecho do poema “Tragédia no Lar”), Carlos Drummond de Andrade (“Cidadezinha Qualquer”), Cecília Meireles (“Murmúrios”), dentre inúmeros outros poemas de autores desconhecidos do grande público. 


Reiterando o que foi dito, para conseguir musicar um poema, é fundamental perceber a musicalidade e o ritmo no texto. Para que a música realmente “convença” o ouvinte, é necessário, também, que o gênero musical escolhido seja compatível com o sentido do texto. Finalmente, minha recomendação para quem tem interesse em composição musical, seja escrevendo letras para música ou musicando poemas, é ficar atento ao sentido, à musicalidade e ao ritmo do texto ou da melodia que servirem como base, para que o resultado final seja um trabalho harmonioso, no qual letra e melodia complementem-se de maneira que ambas sejam devidamente valorizadas. 

(Andra Valladares)

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